A existência deste trem
era um milagre: última linha a ser implantada pela Fepasa,
já no seu final, em dezembro de 1997, sobreviveu por mais de
três anos. Enquanto a eletrificação ainda estava
ativa, ele seguia com locomotivas elétricas até Itapetininga,
onde ela acabava. Dali para a frente eram as diesel. A partir de 1999,
já passou a correr
Bilhete
de ida Sorocaba a Apiaí (12/05/1988).
somente com as diesel por todo o percurso, e, depois que a ALL assumiu
o trecho, passou a utilizar suas locmotivas, mas isso ocorreu por
um tempo curto. Eu viajei nesse trem em maio de 1998: a composição
tinha um carro-restaurante e dois carros de passageiros. "Embarcamos
no trem em Sorocaba às 18 horas. Carros bem conservados, assentos
novos, limpos. Nada de luxo. O bilheteiro lembra aqueles dos filmes:
terno bege claro, gravata e boné, logo que o trem parte de
cada estação ele vem conferir a sua passagem. Depois
de atravessar a zona urbana de Sorocaba, o trem passa pelo que um
dia foi a estação de Lopes de Oliveira, ainda em Sorocaba,
demolida há anos: o que se consegue ver é a placa da
estação sobre a plataforma, que fica entre as duas
O trem parado em Itapetininga, já sem a
locomotiva elétrica e sem o restaurante (Foto André
Luiz de Lima)
linhas. Passa a seguir por Varnhagen, estação recém-reformada,
e George Oeterer, onde, mesmo com a estação fechada
e depredada, sobem e descem passageiros que se dirigem para o bairro
próximo. A essa altura, fui conhecer o restaurante. O responsável,
um senhor de uns 60 anos, talvez, é muito simpático
e explica que o vagão da viagem não é o usual,
que está em manutenção. Por isso, não
tinha geladeira, e a caixa de gelo é usada para as cervejas.
Só há refrigerantes quentes. Sanduíches de queijo,
presunto, café, leite, bolachas, salgadinhos, lingüiças
fritas... dá para não passar fome. O trem segue, passando
por Bacaetava, da qual somente sobrou a plataforma, e aí a
Iperó. Estação grande, fechada, largada, mas
passageiros sobem e descem. À nossa frente, a bifurcação:
a dupla segue para a direita, para Botucatu; e para a esquerda, a
linha simples, ainda eletrificada, onde começa o antigo ramal
de Itararé da Sorocabana. A terceira parada é Tatuí.
Muita gente sobe e desce. O trem segue e pára em Morro do Alto,
estação pequena, algumas favelas em volta, o trem volta
e continua em frente, até Itapetininga. São oito da
noite. Aqui ele deve ficar um pouco mais, pois há troca da
locomotiva elétrica para diesel. Mas vem o primeiro atraso:
a diesel ainda não estava no lugar para a troca, e acabamos
por ficar 40 minutos na estação. Finalmente, tudo pronto,
partimos. Agora, devemos andar por mais de uma hora até a próxima
parada. Daí para a frente a viagem segue normalmente, até
que, de repente, o trem começa a andar muito devagar, a uns
20 km/hora: logo descobrimos o que é. Há um vagão
descarrilado e tombado, junto à linha, a uns 4 km da estação
seguinte. A explicação do bilheteiro: ele começou
a
O trem parado na estação de Itapeva
(Foto André Luiz de Lima).
descarrilar, não parou e acabou por sair dos trilhos 4 km depois,
danificando-os e aos dormentes. Finalmente, chegamos a Rechan, e a
surpresa: a estação repleta de gente. Não com
pessoas que vão embarcar ou esperar passageiros: na maioria
é gente que quer ver o trem chegar. Realmente, o mundo mudou
pouco nessa área: há cem anos atrás, esse era
o programa. Hoje, continua sendo. E é emocionante. Quase dez
da noite, e a estação iluminada, com um monte de gente
se encontrando. O trem parte de novo e em quinze minutos chega a Angatuba,
onde mais uma vez, apesar do horário, encontramos a estação
cheia de gente. Aí começa um longo trecho até
Buri. No trecho existem duas outras estações, em que
o trem só pára se há passageiros para descer
ou subir. Uma é Engenheiro Hermilo, pequena, bonita e isolada,
à esquerda da linha. A cidade, Campina de Monte Alegre, fica
distante, à direita, e mal se pode ver suas luzes. O trem não
pára. Na segunda, Aracaçu, também não,
e a estação mal dava para ser vista, abandonada e sem
qualquer iluminação. E finalmente chegamos a Buri. Já
eram onze e meia, e ainda assim havia gente na estação,
conversando e esperando passageiros. Pouca gente embarcou. O trem
segue em frente e, mais outra hora e meia e atinge Itapeva. Quase
uma hora da manhã, e agora a quantidade de
O trem passa por Itapeva, já com apenas
dois carros - sem o restaurante (Foto André Luiz de Lima).
pessoas era pequena. Alguns desembarcam, e o trem segue viagem. Mais
quinze minutos e atingimos Nova Itapeva, estação recente,
construída há uns vinte anos. Já estamos no ramal
de Pinhalzinho. O trem continua, até atingir Entroncamento,
um pequeno posto, também chamado de Itaboa, onde troca o "staff".
Mais um pouco e o trem pára em Campina de Fora, um vilarejo,
já às duas e meia da manhã, para desembarque
de passageiros; a "estação" é apenas
uma plataforma de cimento, sem cobertura, sem nada. Havia um carro
com pessoas esperando, numa escuridão total, quem desceu entrou
nele e foram embora. E o trem segue e finalmente chega a Apiaí,
com meia hora de atraso. São quase três da manhã.
Os poucos passageiros que restaram desceram e seguiram a pé
para a cidade, cujas luzes se vêem ao longe. Táxis, a
esta hora, nem pensar. Havia algumas pessoas já sentadas na
estação esperando a hora de saída para embarcar.
Somente eu que fico esperando na estação, um prédio
novo e simples. Às três e quarenta da manhã, o
trem parte, no horário. Segue sem parar até Entroncamento,
e de lá até Nova Itapeva, onde passageiros embarcam.
Às seis horas chegamos a Itapeva,
O trem passa por Itapeva, já com apenas
dois carros - sem o restaurante (Foto André Luiz de Lima).
ainda de noite, onde o trem fica parado por mais tempo que o esperado,
pois, segundo o chefe da estação, em Buri há
um trem de carga estacionado e somente quando ele sair da linha será
dada a autorização para prosseguirmos. Passam-se quinze
minutos, e o trem parte, com a condição de que, em Buri,
estacione na linha três, até o trem de carga se deslocar.
No caminho, em quinze minutos o sol nasce. O trem passa então
por uma estação que não vimos durante a noite
Engenheiro Bacelar, totalmente abandonada e cercada pelo mato alto.
O pessoal do trem comenta que é a única estação
da viagem na qual o trem nunca pára, dado ao seu isolamento
e ao seu estado. Chegamos a Buri, e esperamos um pouco antes da estação.
Quando finalmente ele manobra, depois que o trem cargueiro sai, volta
para a linha um, que era a da plataforma. Outra vez sobem e descem
passageiros. Quando o trem parte, já eram mais de oito horas,
e mais de quarenta minutos atrasados. No caminho, desta vez ele para
rapidamente em Aracaçu, depredada, e em Engenheiro Hermilo.
Em seguida, Angatuba. Parte rapido por causa do atraso. Quinze minutos
mais, e chega a Rechan. As paisagens passam à frente de nossos
olhos, casas, vacas, fazendas, pastagens... até que chegamos
perto de Itapetininga, e aos poucos a paisagem rural vai dando lugar
à urbana, até entrarmos na estação. O
trem para para troca de locomotiva, agora da diesel para a elétrica,
e desta vez tudo acontece rapidamente: menos de cinco minutos e estamos
prontos para partir. Depois de pararmos em Morro do Alto, seguimos
para Tatuí. Aí permanecemos por um tempo um pouco maior,
porque o trem teve de embarcar um enxame de alunos de uma escola primária,
que iam a Sorocaba em excursão, e que ocuparam praticamente
todo o carro traseiro. Uma verdadeira festa. Partimos de novo, e,
com pouco mais de meia hora, atingimos a estação de
Iperó. Aí se vê o enorme pátio onde estão
abandonados dezenas de carros e vagões, enferrujados e depredados.
Depois da curta parada, o trem segue e, em pouco mais de dez minutos,
passa dentro da Fazenda Ipanema, onde funcionou a Fábrica de
Ferro Ipanema, primeira siderúrgica do Brasil, desativada há
cem anos, chega a George Oeterer, onde mais gente sobe e desce. Logo
depois o trem já chega à zona urbana de Sorocaba, onde
favelas podem ser vistas de todos os lados. Finalmente, o trem reduz
a velocidade e entra na estação. Chegamos a Sorocaba.
A viagem acabou, descem todos os passageiros, inclusive aquele monte
de estudantes que correm para tomar um ônibus que os estava
esperando à frente da estação. Eram 12:35, com
trinta e cinco minutos de atraso" (relato de Ralph M. Giesbrecht
- do livro Um dia o trem passou por aqui - a história e
as estórias dos trens de passageiros do Estado de São
Paulo e as saudades que eles deixaram, Ralph M. Giesbrecht, RMG,
2001).
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