A B C D E
F G H I JK
L M N O P
Q R S T U
VXY  
 
 

A ESTAÇÃO DE PUREZA NO LIVRO DE JOSÉ LINS DO REGO

Extratos do livro "Pureza", vol. I, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1976, pp. 921-1.060

p. 931

Fazia um mês que estava em Pureza. Era um recanto retirado, onde só existia mesmo, além da casa do chefe da estação, o chalé onde eu morava. Um meu colega da estrada de ferro me arranjara aquele retiro. Fora uma casa que um superintendente da estrada construíra para passar o verão. O lugar é uma delícia, um retiro que só mesmo o gosto dum inglês poderia ter descoberto. Um esquisito, como diz o povo desses lugares. A minha casa fica rodeada de grandes eucaliptos, que rumorejam ao vento. Cigarras e pássaros fazem um rumor que acaricia os nervos. Lá embaixo corre um rio por cima de pedras. E o silêncio do ermo é de vinte e quatro horas. Felismina reclama todo dia esse desterro. Ela é a dona de casa. Uma vez a ouvi conversando com um molequinho contratado para o nosso serviço. Falava mal do lugar, da tristeza, do oco-do-mundo que era Pureza. Nunca vira terra mais esquecida de Deus, mais longe de tudo. A povoação mais perto era a de S. Miguel. (...)

p. 932

(...) Ia ver a passagem do trem das nove e do trem das duas. O grande silêncio de Pureza se quebrava naqueles quinze minutos da parada dos horários. A máquina tomava água no depósito, a água doce do rio que corria por cima das pedras. E fora só por isso que haviam se lembrado daquele lugar para uma estação. Fora a água azul de Pureza que vencera os engenheiros da estrada de ferro. Felismina fizera amizade com a família do chefe, um homem gordo, de olhos azuis, que sempre me cumprimentava de longe. Mas não queria sair do meu bem-estar e não procurava chegar até aquele pobre homem, perdido com a sua família naquele esquisito. Aquilo poderia ser castigo. Chefe de estação que ficava em Pureza era por castigo. A negra me dissera que a gente do hefe era de boa família. O pai dele fora senhor de engenho em Palmares. Mas a história do chefe não me interessava. (...)

p. 934

(...) Lá pela madrugada ouvi um apito de trem muito de longe. E, nada é mais triste nessas ocasiões do que um trem que se comunica, envia sua mensagem por dentro da noite. Sem dúvida que viria de Campina Grande, carregado de algodão. O maquinista, quando chegasse em casa, dormiria um sono pesado, profundo, sem pensamentos bestas para lhe perturbar a cabeça. (...) O trem que apitava de longe, vinha chegando para a estação. A máquina chiava. E eu ouvia nitidamente a conversa do condutor com o chefe da estação. Era uma composição de carga, que teria de alcançar muito cedo o Brum, para pegar um navio no porto. Eu ouvia a água caindo no tanque da máquina. E com pouco mais o trem deixava Pureza. O chefe da estação cairia outra vez no sono e na certeza dormiria bem. (...)

p. 935

Começara sem dar por isto a me preocupar com o povo de Pureza. Seria no máximo uma dúzia de gente que morava por lá. Na casa do chefe da estação contavam-se: ele, a mulher e duas filhas moças. E estes eram os mais próximos da minha casa. Do outro lado da linha, o agulheiro e a mãe. Na hora dos trens de passageiros, porém, a estação se movimentava. Do meu alpendre eu via quando começava a chegar gente. O primeiro que aparecia era um cego, que sempre passava pelo chalé para pedir a Felismina a sua esmola. Duas vezes por dia esse cego ficava na plataforma, de mão estendida. Vinha também um carteiro de São Miguel com a mala do correio. Esses dois eram figuras obrigatórias. às vezes chegavam carros de bois com famílias dos engenhos. As mulheres procuravam a casa do chefe, para mudar os vestidos. E os homens tinham direito às cadeiras de palhinha da sala de visitas. Outros, de guarda-pó no braço, esperavam o trem. E a estação ficava com uma meia hora de movimento intenso. Quando havia atraso no horário, saíam para passear pelos arredores. Da minha casa, ficava olhando tudo isto. Sabia dos atrasos dos trens, dos nomes dos passageiros, pelo moleque. O Luís só não dava notícia do pessoal do engenho Juçara. Ninguém via o moleque nessas ocasiões. Mal via ele gente de lá, se escondia até a partida do trem. (...)

p. 936

(...) presente que o Coronel Joca do Gameleira me mandava. Tinha me visto uma vez na estação e me convidara para ir até seu engenho. Conhecera meu pai em viagem de trem no tempo em que este estava com a mulher doente em Floresta. (...) (...) A estrada de ferro em Pureza adquirira uma nesga de terra que dava somente para construir a casa do motor onde funcionava a bomba. (...) (...) O coronel Joca tinha cuidados para aquela mata, como se fosse para uma filha. Contara-me o chefe da estação que o Coronel dissera muito desaforo ao engenheiro da companhia que propusera a compra da mata.

p. 939

Sempre que eu ia assistir à passagem dos trens, via na janela da estação as duas filhas do chefe. Cumprimentava-as e elas duas sorriam para mim. Reparando bem, eram duas moças bonitas. E disto elas tinham consciência, pois se enfeitavam para os horários. (...) Ficavam as duas debruçadas na janela. Isto invariavelmente, às nova da manhã e às duas da tarde. Via-as assim, e não sei por que, ficava com pena daquelas moças, escondidas naquele oco-de-mundo, bem bonitas, se contentando com aqueles poucos minutos para viver (...). Felismina já me havia contado aos pedaços a história do chefe da estação. Os avós foram grandes, tiveram muitas terras em Palmares. Mas o pai dera para o jogo. Botara o engenho no lasquinê, perdera tudo, e os filhso tiveram que ficar assim pelo mundo, como o pobre de Seu Antônio, criando as filhas na estação da Great Western, vivendo de Cabedelo para Araçá, de Araçá para Periperi. Infeliz existência para quem tivera antepassados enraizados em terra, que haviam vindo de antigos troncos (...)

p. 940

De meu alpendre eu via o movimento da estação. Seu Antônio, de boné na cabeça, com as iniciais da estrada de ferro, G.W.B.R., em letras de ouro. Também ele só usava aquilo na hora dos trens. Agora, com a safra, o movimento de Pureza crescia. De vez em quando chegavam carros de bois carregados de açúcar e de lã. A paz do retiro se quebrava com o chiado dos carros, com os gritos dos carreiros. (...)

p. 941

(...) O sol ia se pondo, por cima das folhas dos eucaliptos ainda se podiam ver os últimos raios esquivos. E as sombras já cobriam a estação. E lá para os lados da estrada de ferro escurecia. Os cantos mais baixos, mais tristes. D. Francisquinha, a mulher do chefe, tirava panos do coradouro. E eu ouvia o tique-taque do telégrafo, e andorinhas se punham pelos fios. (...) (...) Luís quase nada fazia dentro de casa. Ele tinha de ir buscar na povoação o que não me vinha do Recife, carne, pão fresco. Era ele quem trazia a água da fonte escondida na mata. (...)

p. 943

Felismina depois me contou a história de Ladislau. (...) A mulher deixara o pobre com dois filhos pequenos e fora pelo mundo com um cassaco de estrada de ferro. Ele criara os meninos. Um entrara para a Marinha e já era coisa no Rio. Mandava de vez em quando uns cobres para o pai. O outro filho trabalhava no engenho Gameleira como maquinista. (...) Felismina, quando via o cego sozinho, vindo de linha a fora, ficava agoniada. Todos os dias uns quinze minutos antes dos trens, lá vinha ele chegando pelo leito da linha, devagar, com o cacete na mão, os olhos dos outros sentidos bem abertos. Ele sabia que naquele momento podia passar. Só se fosse a Gasolina, como chamava ali o automóvel de linha. (...)

p. 944

(...) Pela manhã e pela tarde, via-o chegando de linha a fora, sem tropeçar nos dormentes, de passo certo, até a plataforma. Ficava no mesmo lugar de sempre, e quando trazia a rabeca, tirava as suas músicas sem que ninguém lhe pedisse. Outras vezes não trazia o instrumento. Esperava que o trem chegasse e, de portinhola em portinhola, saía pedindo. Quando trazia a rabeca, cantava uma cantilena que era a história de Santo Antônio. Os passageiros deixavam cair os tostões no coité e, nos quinze minutos de parada, Ladislau não estancava o seu canto.

p. 945

(...) Para os dois, Ladislau trazia uma mensagem, comunicava-lhes uma satisfação que me escapava. Deixava-os assim com o seu artista e saía de casa pelo leito da linha. E de linha a fora ia andando. Quando o sol não queimava muito chegava até o pontilhão das Marrecas. Atravessava uma, duas, três vezes, por cima dos dormentes, vendo lá embaixo o rio correndo. A princípio tinha medo, mas aos poucos fui criando coragem e afinal fazia aquilo como qualquer cassaco. Pela margem da estrada ficavam as casas dos cassacos, dos homens que trabalhavam na conservação das linhas. Não sei como lhes arranjaram esse nome. Nunca me explicaram a origem e a significação. Ganhavam mais que os trabalhadores de engenho e viviam de trole, com o cabo dando conta dos quilômetros a cargo deles. Moravam em casas como a de Ladislau, casas tristes, nuas, sem uma árvore, quando muito rodeadas de pinhão-roxo. Consideravam-se homens livres. Em cima deles não viviam os feitores de engenho, e falavam mesmo de cabras de bagaceira com desprezo. Via os filhos deles pela estação, cobertos da mesma miséria dos outros meninos que encontrava lá pelos altos, na mata. (...)

p. 946

A campainha da estação tocava sinal de partida, e o Coronel Joca, de guarda-pó de palha de seda e anel de brilhante no dedo, despedia-se de mim com um bom sorriso na cara vermelha. Ladislau já estava de pé no seu lugar, esperando os carros de primeira para pedir as suas esmolas. (...) O Coronel Joca botou um tostão no coité, e sem dúvida que Ladislau lhe desejava muitos anos de vida. O trem apitava. O agulheiro botava a bandeira azul. E pureza quebrava o seu silêncio por quinze minutos. Saltava gente na estação. D. Francisquinha fazia café para vender, e tudo mudava em Pureza. Era agora outro lugar. A máquina chiava tomando água, um rebuliço de gente, muita fala. Com pouco mais ouvia-se o sinal de partida dado pelo chefe, de boné com letras douradas, depois o apito fino do condutor, o apito grosso da máquina, e o horário partia. Tudo ficava outra vez no silêncio do ermo. Apenas o cheiro de carvão de pedra demoraria a desaparecer, ficava por cima dos eucaliptos, mas aos poucos se sumia, fugia. E Pureza era outra vez a mesma, com as cigarras chiando, os pássaros cantando, o burro lá embaixo puxando água e o rio roncando nas pedras. A grande e boa tristeza das tardes vinha chegando. (...) Quase sempre o gramofone da estação iniciava o concerto depois da partida do trem das duas. As duas filhas do chefe tinham se mostrado em traje de passeio aos passageiros do trem. E uma como que saudade do mundo fazia com que elas fossem para a música como para um abrigo. (...)

p. 950

(...) E, pensando nisso, comecei a fazer o possível para distrair o moleque. Chamava-o para junto de mim e fingia interesse pelas coisas de fora, perguntava pela vida do agulheiro Francisco, pelas filhas do chefe. Luís respondia a tudo, me informava de tudo. Dava-lhe revistas que recebia com gravuras da guerra, retratos de generais alemães e soldados franceses, fotografias de navios. O moleque ficava de beiço caído, olhando para tudo. Mas saía de junto de mim e ia para perto de Felismina. Eu sabia da admiração que ele tinha pela profissão de agulheiro. Para ele a coisa maior do mundo seria baixar o poste e apresentar a bandeira para os trens. E, de acordo com o chefe, pedi ao agulheiro para levar Luís com ele. Seu Antônio mesmo lhe disse: - Olhe, Seu Luís, o senhor será o substituto do Francisco.

Colaboração: Flavio Cavalcanti, 2007

Página elaborada por Ralph Mennucci Giesbrecht.